domingo, 4 de abril de 2010

PROCISSÃO

É sexta feira santa, o povo caminha com os cânticos lúgubres e tristes. No rosto das pessoas vejo uma fé quase que inacreditável. Mulheres sofridas se condescendem com a figura de Maria a acompanhar o seu filho no trajeto da cruz. Cada parada uma meditação da via-cruxis, pessoas chorando e relembrando aqueles momentos tristes, que se misturam também com a tristeza de suas vidas. Não há como separar o imaginário recordatório de suas próprias dores da vida. Aqui e acolá algumas mocinhas com sorriso disfarçado no rosto olham inquietas para os lados como se estivessem à espera de alguém. Homens mais velhos carregam fincos fundos e bem marcados, nos traços do rosto, o sofrimento do sertanejo recém-chegado à cidade, suas mão calejadas seguram estandardes e carregam por horas a fio, pois são bem mais amenas que as enxadas que neste dia ficaram paradas.

O calor arrebatador do sol nos ombros e os olhos quase fechados pela claridade da luz não parece em nada modificar a caminhada daquela gente. Sobem ladeiras por ruas estreitas, irresolutos, a fé em Deus e em dias melhores não dão lugar ao esmorecimento causado pelo cansaço.

Senhoras com terços na mão balbuciam preces quase imperceptíveis durante a caminhada, e até duvido que estejam com plena consciência do que falam. Mais parecem um mantra repetido várias vezes sem nenhuma atenção.

Sigo com eles, e a caminhada faz pensar sobre minha vida. Nas quedas do Cristo, vejo minhas quedas também neste mundo. E a cada “estação” paro um pouco com o meu espírito crítico já solidificado pelos questionamentos próprios.

A Procissão tem um ar mágico, onde cada um carrega a sua cruz de tristezas e vicissitudes para deixa-las aos pés da verdadeira cruz no momento em que o Cristo entrega a sua vida ao Pai Celestial. E assim entregamos nas mãos de Deus tudo aquilo que não temos forças para mudar, assim como não teve o filho de Maria a intenção de muda-las. Pois bem podia, já que era o filho de Deus, mas quis mostrar para o mundo a confiança suprema na vontade do Pai.

Deixo agora o raciocínio lógico para entrar num campo pouco explicável por fenômenos físicos. A fé. Palavra tão pequena mas de um significado que ultrapassa toda a compreensão humana. A fé inabalável que fez mover montanhas, a fé que fez abrir o mar vermelho em dois, a fé de Daniel na cova dos Leões, sem medo e sem arranhões, a fé de Jó após todo o mar de flagelos que pousou em sua vida, a fé de Maria aos pés da cruz, digna e de pé, ao ver morrer aquele filho a quem tanto amou e que presenciou tantos prodígios.

Na procissão, a figura de Maria me comove. Imagino o pobre coração de uma mãe ao ver dilacerada a figura do filho, sentia com ele as dores das quedas e das chibatadas, da coroa de espinhos, mas mantinha-se de pé. Quando tudo confabulava contra sua fé, ela esperava em Deus o alívio de suas dores. E pensava na dor física, mas pouco sabia que os homens iriam matar o corpo humano que personificava o filho de Deus, mas não teriam forças nem competência para matar o espírito. Esse só deixa se corromper pela vontade própria. Mas o Cristo era convicto de sua missão. Não foi corrompido pelos maus pensamentos corporificados pelas ações vis tão comuns em nossos momentos terrestres. Naquele momento deixando o corpo humano, o espírito foi de encontro ao Pai. E Deus na sua infinita misericórdia, ainda antes de segurar a mão do seu filho atendeu mais um pedido dele, quando entregou Maria para ser a mãe dos homens. “Eis aí o teu filho, filho, eis aí tua mãe”. E ela cumpriu a missão, e ainda cumpre até hoje.

Continuo a caminhada, ela cansa, faz suar. Mas acima de tudo faz refletir. E aqueles que conseguem entender esse significado todos os anos têm a oportunidade de deixarem para trás mais um rol de maus sentimentos e tentar fazer-se mais justo e santo. Se queremos ter a paz de espírito que tanto sonhamos precisamos abrir mão de muitas coisas, de comportamentos de apego à coisas que não nos edificam em nada. Abrir mão do medo de sermos justos e verdadeiros perante o próximo e perante Deus. Ter medo de causar sofrimento não justifica sermos impiedosos com o outro, ainda mais quando esse outro nos é importante.

Na caminhada terrestre, como no caminho do calvário, temos quedas, mas precisamos saber levantar com dignidade. Ter atos de bravura espiritual, por mais que essa bravura reflita em nossa vida física. Um homem pode até conseguir dormir por algum tempo quando age com desrespeito e desamor ao próximo. Mas não tem um sono tranqüilo. E mais cedo ou mais tarde esse comportamento irá corroer-lhe as entranhas. Porque carregamos o gérmen da justiça e da verdade, pois somos filhos de Deus, à sua imagem e semelhança. E Deus é justo e desprovido de mentiras e falsidades.

Na caminhada da procissão torcemos para que o Cristo se levante, mesmo sabendo qual é o fim da história, ainda assim nos resta no fundo um desejo de um final mais ameno, e porque não mais feliz para a nossa concepção de homem moderno. Entretanto, esquecemos da nossa própria crucificação aos maus comportamentos. Do nosso apego inconsciente à mentira. Às nossas justificativas falsas pelo nosso comportamento. Enganamos para evitar o sofrimento do outro. Somos falsos e justificamos baseados em situações injustificáveis. Ser justo com o outro depende de sabermos ser justos com nós mesmos. É aí que entra a grande chave da nossa libertação. O amor ao próximo e a verdade.

Na meio do povo penso em várias coisas, e caminhada me faz bem. O sofrimento físico dos pés cansados, a roupa pregada ao corpo pelo suor, o andar ziguezaqueante a relembrança da história de Jesus, me enchem de coragem e determinação para algumas mudanças.

Acho que agora entendo o significado dessa maratona anual. O sofrimento leva a redenção. Passar por entre as ruas e becos apertados faz menção aos momentos difíceis e que nos apertam pelos lados. Subidas e descidas são a nossa caminhada espiritual rumo à eternidade. As quedas são as provações, mas levantar-se é o ato mais digno e importante. Levantar de nossas mentiras, levantar de nossa falta de amor ao próximo, levantar de nosso egoísmo capaz de permitir fazer do outro uma mera peça em nossa vida, sem significado nem valor. Levantar e deixar por terra as falsidades. Levantar e ter o propósito de não mais cair por falta de coragem de se fazer o que é justo.

A falta de respeito e de amor ao próximo faz sermos menos dignos na caminhada. É por isso que nos angustiamos e nos sentimos fracos. A força está no amor e na verdade. É preciso saber dizer não quando necessário. É preciso saber dizer sim quando chegar o momento certo. E o momento certo, para corrigirmos o que está errado em nossas vidas não está por vir. Já está no nosso presente. É agora. Deixar para depois é esquivar-se de nossa responsabilidade como filhos de Deus. Jesus não se esquivou escondendo daqueles que o perseguiam. Encarou a verdade. E foi libertado após o sofrimento. A verdade liberta. E traz a paz que é bálsamo para nossa vida...

É por isso que existe a procissão. Acima de uma demonstração de tradições populares, fazer-se parte dela significa caminhar rumo ao Pai, como fez o Cristo. Agora, entendo esse aglomerado de gente. Todos esperançosos e recorrentes à misericórdia divina para ter coragem de mudar suas vidas...

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